Marx: o valor dinheiro na economia capitalista

A economia mercantil complexificou-se ao longo da sua história, sendo a sua primeira expressão a troca direta.

Esta primeira expressão da economia mercantil, apesar de simples, foi, contudo, gerando problemas crescentes. Com efeito, a troca da mercadoria possuída pela mercadoria que se pretendia nem sempre constituía um ato fácil. Pela sua importância e valor de uso, havia mercadorias que eram muito demandadas, o que, gradualmente, provocava o seu rareamento e, consequentemente, conflitos para a sua obtenção.

Iniciou-se, assim, posteriormente, uma fase da história da humanidade onde a intermediação das trocas passou a ser realizada por uma mercadoria cujo valor de uso fosse reconhecido pela maioria, mas cuja raridade ou escassez não colocasse um problema. É neste contexto que surge a mercadoria metal, produzida em quantidade suficiente para permitir as trocas. Gradualmente, os metais que se deterioravam facilmente foram sendo substituídos por outros com maior resistência, pelo que as trocas tiveram como intermediário, primeiro, o ferro, depois o estanho, o bronze, a prata [1] e, finalmente, o ouro.

Acompanhando este processo de intermediação das mercadorias, Marx descobre, finalmente, o mistério do dinheiro.

Com efeito, a economia torna-se inexplicável caso não consigamos compreender a mercadoria dinheiro. O dinheiro tem uma função muito precisa na economia, uma vez que é uma mercadoria cujo valor de uso representa o valor [2]. O dinheiro é, por esta razão, um equivalente de valor, ou seja, é a forma comum de valor, pois é a própria expressão do valor contido na relação de valor das mercadorias:

Agora, o tipo específico de mercadoria em cuja forma natural, a forma de equivalente, se funde socialmente torna-se mercadoria-dinheiro ou funciona como dinheiro. Desempenhar o papel de equivalente universal no mundo das mercadorias torna-se sua função especificamente social e, assim, seu monopólio social” (MARX, Karl [1867]. O Capital. Livro I: O processo de produção de capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p.145).

Cada mercadoria incorpora duas formas: a forma natural (como objeto de uso) e a forma de valor (como portadora de valor). Como vimos em textos anteriores, qualquer mercadoria é uma forma de valor (e, portanto, cada mercadoria possui uma forma individual de valor), uma vez que possui um valor de troca (ou seja, existe uma relação de valor entre esta e outra mercadoria que permite estabelecer o seu valor de troca). Neste sentido, o dinheiro é uma mercadoria que possui um valor de uso – servir de representação do valor – e um valor de troca (a TTSN tem como correspondência a quantidade de trabalho socialmente necessária para a produção de ouro).

Na economia de mercado, um produtor é um produtor especializado, uma vez que vende uma mercadoria cujo valor de uso não lhe interessa. Assim sendo, numa economia de mercado:

M (mercadoria) – D (dinheiro) – M (mercadoria)

(circulação) (circulação)

Isto quer dizer que, numa primeira fase, a mercadoria (M) se converte em dinheiro (D), através do ato de venda, e, numa segunda fase, o dinheiro (D) se converte em mercadoria (M), através do ato de compra. Paralelamente a esta forma, encontra-se uma outra: D (dinheiro) — M (mercadoria) — D (dinheiro), quando o dinheiro se transforma em mercadoria e esta se transforma dinheiro (comprar para vender): “O dinheiro que circula deste último modo transforma-se, torna-se capital e, segundo sua determinação, já é capital” (MARX, Karl [1867]. O Capital. Livro I: O processo de produção de capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p.224). Com efeito, se no ciclo M-D-M “o dinheiro é, enfim, transformado em mercadoria, que serve como valor de uso e é, portanto, gasto de modo definitivo”, no ciclo D-M-D “o comprador desembolsa o dinheiro com a finalidade de receber dinheiro como vendedor. (…) Ele liberta o dinheiro apenas com a ardilosa intenção de recapturá-lo” ((MARX, Karl [1867]. O Capital. Livro I: O processo de produção de capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p.225). Como portador consciente deste movimento de circulação, o possuidor de dinheiro transforma-se em capitalista:

Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro. O conteúdo objetivo daquela circulação – a valorização do valor – é sua finalidade subjetiva, e é somente enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo de suas operações que ele funciona como capitalista ou capital personificado, dotado de vontade e consciência. Assim, o valor de uso jamais pode ser considerado como finalidade imediata do capitalista. Tampouco pode ser o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento do lucro. Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça apaixonada ao valor é comum ao capitalista e ao entesourador, mas, enquanto o entesourador é apenas o capitalista ensandecido, o capitalista é o entesourador racional. O aumento incessante do valor, objetivo que o entesourador procura atingir conservando seu dinheiro fora de circulação, é atingido pelo capitalista, que, mais inteligente, lança sempre o dinheiro de novo em circulação” (MARX, Karl [1867]. O Capital. Livro I: O processo de produção de capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p.229).

Por sua vez, as crises sucedem, precisamente, quando há uma interrupção na circulação M-D-M, ou seja, quando não se verifica a segunda fase (conversão do dinheiro em outra mercadoria) [2]. Isto quer dizer que toda e qualquer crise implica uma interrupção na circulação do dinheiro e das mercadorias.

Com efeito, numa economia de mercado – economia não planejada [3] –, um produtor de uma determinada mercadoria pode não conseguir vendê-la. Se uma mercadoria não for vendida, isto significa que esta mercadoria não é um produto social, tendo o seu trabalho sido desperdiçado. A esta situação de interrupção da circulação, Marx designa salto mortal.

Sendo o dinheiro, numa economia de mercado, um reservatório de valor, o dinheiro torna-se no fator mediador das relações de troca, criando uma infinidade de relações de troca possíveis, unificadas à sua volta.

No seguimento da análise concreta da realidade, Marx vai concluir que a lei de desenvolvimento do modo de produção capitalista implica a concentração e centralização de capitais. Apesar de Marx não ter conhecido, em vida, o fenómeno da monopolização, antevia, já então, as tendências que conduziriam ao monopólio, quer na indústria, quer na agricultura.

Notas

[1] A prata tem um valor superior ao do bronze, pois o TTSN é superior na produção da mercadoria prata do que na produção da mercadoria bronze.

[2] Com o desenvolvimento do capitalismo, o ouro foi sendo substituído pelo papel (que deveria representar a quantidade de ouro guardada num banco), até que deixou de circular. A correspondência entre o ouro e o papel terminou em 1971.

[3] O socialismo implica, ao contrário, a planificação de uma economia.

fevereiro2020